O oncologista americano Vincent DeVita faz
parte da história do câncer.
Na década de 1960, ainda como um iniciante no Instituto Nacional de Câncer
(NCI, na sigla em inglês), nos Estados Unidos, encontrou médicos destemidos que
se aventuravam em testar combinações tóxicas para combater tumores que sempre
foram sentenças de morte. Lá, desenvolveu um tratamento quimioterápico para
câncer de mama e outro que passou a curar 80% dos casos de linfoma de Hodgkin,
que ataca o sistema linfático. A visibilidade lhe garantiu a posição de
diretor, entre 1980 e 1988, do NCI, onde foi um dos protagonistas da guerra
contra o câncer, um esforço de pesquisa financiado pelo governo americano
para desenvolver novos tratamentos. Hoje, aos 80 anos, após enfrentar um câncer
na próstata, DeVita resolveu contar os bastidores dessa história em sua
biografia, The death of cancer (A morte do câncer, na tradução para o
português), que chegou às livrarias americanas em novembro, sem previsão de
edição no Brasil. “Agora, estou no fim de minha carreira e posso falar algumas
coisas que incomodam as pessoas”, disse a ÉPOCA de Connecticut, nos Estados
Unidos, onde trabalha no Centro de Câncer da Universidade Yale. DeVita acusa a
agência que controla a aprovação de drogas nos Estados Unidos, a FDA, de atrasar
os novos tratamentos e diz que muitos médicos não prescrevem os
tratamentos adequados por não acreditar na cura. “Não somos limitados pela
ciência, mas por nossa inabilidade em fazer bom uso da informação e dos
tratamentos que existem.”
Os obstáculos não são científicos, e sim impostos por médicos e agências regulatórias, diz Vincent DeVita, que dirigiu o Instituto Nacional de Câncer dos Estados Unidos |
ÉPOCA – O título de seu livro é A morte do câncer. O senhor acredita que alcançaremos a cura?
Vincent DeVita – Temos as ferramentas para erradicar o câncer. Ele não
será mais um grande problema de saúde pública. Estamos curando mais pacientes.
Em alguns casos, ele já foi convertido em uma doença crônica, que não coloca a
vida em risco num curto espaço de tempo. O melhor exemplo é a leucemia mieloide
crônica, causada por um defeito genético específico. Em 2001, foi lançada uma
droga que age contra essa anormalidade celular. Tudo o que os pacientes têm de
fazer é tomar uma pílula diariamente. Nem sabemos qual é a duração média
da vida dos pacientes porque é muito próxima da expectativa normal. É quase
como ser um diabético.
ÉPOCA – O câncer são várias doenças diferentes. Por que o senhor é otimista sobre curas diversas?
DeVita – O contexto hoje é muito diferente em comparação com o de quando comecei na área, nos anos 1960. Hoje, a célula cancerígena não é mais uma caixa-preta para nós. É um diagrama, e podemos ler diagramas. Entendemos quais são os estágios por que passa uma célula cancerígena, o que a impulsiona. Temos ferramentas para lidar com cada uma dessas etapas. A ciência do diagnóstico e do tratamento é tão forte agora que não parará mais de se desenvolver. É esta mensagem que quero passar: a ciência está marchando em frente. A aplicação, entretanto, não está se movendo rápido o suficiente. Estamos limitados por nossa inabilidade em fazer bom uso da informação e dos tratamentos que já temos. Por vezes demais, vidas acabam não em razão do câncer em si, mas por causa da burocracia exigida durante o desenvolvimento de novas drogas e por causa de médicos que não defendem seus pacientes. Eles têm medo de arriscar, relutam em abandonar crenças antigas. Eu os chamo de oncologistas hesitantes.ÉPOCA – Como se comportam os oncologistas hesitantes?
DeVita – Não sei como o câncer é tratado no
Brasil. Se é como nos Estados Unidos, acho que muitos profissionais não tratam
a doença de uma maneira agressiva o suficiente para derrotá-la. Eles confundem
criar um estado crônico verdadeiro, uma vida longa com câncer, com alguns meses
extras de vida. Os oncologistas mais antigos tendem a ser mais negativos. Na
década de 1960, quando surgiram os primeiros tratamentos quimioterápicos,
muitos tinham dificuldade em prescrever da maneira correta porque era tóxico.
Afinal, por que deixar o paciente mais doente? A resposta é que, se aplicada
adequadamente, a quimioterapia deixa a pessoa doente, mas, quando termina, o
paciente volta a se sentir bem e está curado. Os médicos jovens já são mais
positivos, e alguns muito bons em tratamentos agressivos. Mas ainda lhes
ensinam que é mais seguro não usar a palavra “cura” para câncer. Os médicos têm
medo, não querem ser desmentidos. De repente, o paciente está indo bem e tem
uma recaída. Eles sentem que o desapontaram.
ÉPOCA – É pouco provável que esse tipo de comportamento seja causado apenas por crenças pessoais. O sistema de saúde tem alguma influência?
DeVita – Muitos médicos agora se baseiam em diretrizes elaboradas com base em estudos e consensos formulados por painéis de especialistas. Elas ditam quando e como os tratamentos devem ser usados e servem como parâmetro para a FDA, a agência que regula a aprovação de medicamentos nos Estados Unidos, decidir se um novo tratamento é mais ou menos eficaz que o anterior. Os planos de saúde também se baseiam nessas diretrizes para decidir se cobrirão ou não um tratamento. Por causa desse contexto, os médicos acabam sendo incentivados a não desviar demais dos padrões, o que os inibe de tentar algo novo. Pacientes que talvez pudessem ser curados por novas abordagens morrem. Essas diretrizes precisam ser atualizadas com frequência, e elas raramente são, porque isso exige tempo e dinheiro. Existe também a dificuldade de o médico encaminhar o paciente para tratamentos de ponta, em fase experimental. Temos 68 centros de câncer nos Estados Unidos. Para inscrever um paciente em um teste longe de onde ele mora, é preciso verificar se o seguro dele cobre despesas médicas fora da área dele. É o tipo de problema que afasta os pacientes da terapia correta.ÉPOCA – O senhor diz que a FDA é um dos obstáculos que dificultam a modernização dos tratamentos. Por quê?
DeVita – A FDA faz muito mais requisições do que deveria para aprovar drogas contra o câncer. É claro que precisamos de regras, mas não de todas as que temos agora. Um dos requisitos é que as drogas sejam testadas separadamente, quando sabemos que os melhores resultados são conseguidos em conjunto. Agora, além disso, a FDA está pedindo que as combinações de drogas também sejam testadas. Isso vai atrasar mais o processo. É preciso ter padrões diferentes para testar drogas em pacientes que podem não ter mais que seis meses ou um ano de vida. Câncer é a doença crônica mais curável, mas também a mais fatal. É diferente de diabetes, hipertensão ou artrite, casos em que os pacientes vivem com a doença por um tempo de vida próximo do normal. Novas drogas para essas doenças precisam ser seguras suficientes para o paciente tomar por muito tempo.ÉPOCA – Não é um risco diminuir os padrões para aprovar drogas contra o câncer e autorizar medicamentos caros, que aumentarão os custos para o sistema de saúde e que podem expor os pacientes a mais sofrimento, em troca de benefícios não muito grandes?
DeVita – É uma questão complicada. É um erro concentrar-se em custo quando estamos tentando desenvolver novos tratamentos. Primeiro, precisamos descobrir se funciona. Caso sim, mesmo que seja um tratamento caro, ele se tornará mais barato porque haverá competição. Até as drogas mais caras agora se tornarão mais baratas com o passar do tempo.ÉPOCA – O senhor enfrentou um câncer na próstata há cinco anos. Encarou os problemas que critica?
DeVita – Experimentei todas as inconveniências do sistema médico, todo o sistema como eu o via. Não foi agradável. Foi difícil. Quando recebi o diagnóstico, pensei por um tempo e percebi que alguém precisava fazer por mim o que eu fiz para meus pacientes: insistir para que conseguissem entrar em um novo protocolo de pesquisa ou para que recebessem um tratamento agressivo, com mais ciclos de quimioterapia. Pedi para meu colega Steven Rosenberg, chefe da cirurgia do Instituto Nacional de Câncer, ser meu defensor, e ele aceitou. Meu caso era complicado. Precisávamos achar alguém disposto a fazer uma cirurgia que contrariava as indicações de praxe para o meu caso. Nós encontramos, e foi um sucesso.ÉPOCA – Qual é seu conselho para quem está lutando contra o câncer e pode enfrentar os mesmos problemas?
DeVita – Encontre um bom médico. Ele terá capacidade para tomar as
decisões certas. Há muitas técnicas em desenvolvimento, e ele poderá explorar
todas as possibilidades. Sobrevivi porque meus médicos foram corajosos em usar
as armas que já tínhamos – as mais antigas, mas que me permitirão usar as novas
no futuro, caso eu precise. Onde tínhamos algumas, agora temos muitas e há mais
por vir. Com sorte, elas não serão enterradas pelo sistema. Para mim, aos 80
anos, isso significa que meu câncer de próstata agressivo será uma doença
crônica em vez de fatal.
Fonte: Época.globo.com
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